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terça-feira, 14 de outubro de 2014

O Pinhal dos Vendavais

Meu amor,

Digo-te porque o sei.

O meu mundo não é o mesmo desde há muito e apesar de todas as mudanças que já o viraram do avesso, continuo-me a lembrar de como tudo começou.
Nunca fui curioso ou desinibido o suficiente para tentar perceber tudo aquilo que me saltava ao olhar ou que teimava em não perceber, mesmo que me desse a volta a cabeça e que, à noite, na segurança dos meus cobertores, eu ponderasse. Vivia, apesar do meu rosto alegre e despreocupado, em comunhão com uma terrivel angústia por estar sempre a rejeitar o mundo e por não me deixar viver o que tinha para viver sem qualquer restrição. No entanto, como bem sabes, continuava a rir-me e a cantar muito alto, como se o planeta fosse meu.
Houve, naquele dia, e felizmente, algo em mim que despertou e me deixou ver tudo de uma outra forma, muito mais suave e bela.
Tempestades não eram aqui vistas havia muito tempo, o clima solarengo reinava e nem o Inverno conseguia trazer o frio intenso que em tantos outros lados se fazia sentir. Eu estava no pinhal, como sempre, o sitio onde me escondia, entre árvores e árvores ornadas com folhas e de casca grossa. Escrevia, como sempre fiz, e não temia nada do que ali pudesse aparecer. Não porque achasse que conseguiria afastar qualquer mal que me viesse a perseguir ou porque achasse que ali no meu santuário, onde escrevinhava no meu caderno, ninguém se atrevia a entrar, nem por pensar que por um qualquer estranho motivo todos os animais que ali viviam se aliavam a meu favor e expulsavam todas as almas humanas que não a minha.
Ali tinha sossego, o silêncio barulhento da natureza confortava-me e os ruídos da civilização não conseguiam penetrar por entre as árvores que tão boa companhia me faziam. Ali a inspiração corria livre e a arte preenchia-me, ali tudo era puro, tudo era bom e, mesmo assim, eu não era alegre, escrevia negramente poesias de tristeza e melancolia, ali não havia amor, as pedras não me adoravam e a terra fria não me aquecia o coração.
Cinco segundos foram os suficientes para que tudo mudasse e o espanto me preenchesse o coração.
Vinda para lá das árvores, do lado oposto ao qual eu tinha chegado, apareceste tu, com um vestido branco a adejar violentamente, sim, mesmo ali por entre as árvores onde nem mais a pequena brisa corria, e uma flor roxa, da qual ainda hoje não sei o nome, no cabelo que como o de uma deusa esvoaçava em redor do teu rosto moreno.
A minha boca abriu-se tanto de espanto que um pardal podia ter voado lá para dentro e feito o seu confortável ninho. Quem se atrevia a entrar onde antes só eu ia? Quem era aquela que se atrevia sem qualquer pudor a trazer o vento para onde antes reinava a calmaria?
Pensei em esconder-me atrás da árvore onde me encostava, talvez subir para junto das centenas de animais e insectos que vivam nos seus ramos, cavar um buraco e enterrar-me lá. Se mostrasse que estava ali alguém certamente tu não terias medo de ali ficar e o meu sossego nunca mais seria reestabelecido.
Felizmente, sei-o agora, as minhas pernas não tiveram vontade suficiente para se moverem e deixei-me ali ficar, de boca aberta e com o lápis na mão, com a ponta a premir o papel do caderno no inicio de uma qualquer palavra da qual já me esqueci.
O ar não se movia, nem o bater das asas de uma mosca por ali se aventurava e, ainda assim, aproximaste-te de mim com o vestido a adejar violentamente. Preparei-me mentalmente para o frio, mas fui surpreendido quando de ti apenas calor foi emanado.
"Olá", cumprimentaste-me tu com um sorriso encantador nos lábios, "Costumas vir aqui? Eu nunca cá tinha vindo antes."
Acenei afirmativamente embriagado pela doçura da tua voz e puxei o caderno de encontro ao meu peito para que não pudesses ver a parte de mim que ali se escondia.
" É um pinhal bonito, sossegado, gosto do sossego e de música, o meu sossego mais sossegado é a música e um bom livro, como o que tens aí junto ao coração, tenho a certeza de que é um bom livro", declaraste enquanto te sentavas perto de mim, encostada à mesma árvore.
Permaneci calado durante os breves segundos em que o teu cheiro semelhante a pó de estrelas não chegou ao meu nariz. Soltei um suspiro e voltaste a sorrir.
Mantive o meu caderno fortemente encostado ao peito e, fazendo uso da pouca curiosidade que por mim navegava, observei a flor roxa que te ornava o cabelo. Nela vi nada mais nada menos do que um olho que chorava e, espanto dos espantos, olhei imediatamente para os teus olhos que continuavam presos em mim. Neles, oh grandiosa e bela vida!, neles vi cidades, nuvens e o céu, planetas e estrelas, galáxias e perfeição...que perfeição! O meu caderno desprendeu-se do meu peito e caiu no meu colo. Voltaste a sorrir.
"Posso ler?"
Podias tudo e, já rendido, até te entreguei o caderno. Não desviei o olhar enquanto o leste. Veio a noite e a lua, o sono, não adormeci e o sol estendeu-se novamente pelo céu com o azul como companhia, lias ainda e sorrias, como nunca deixas-te de fazer. Quem era aquela que ali estava? Quem tinha destruído as barreiras do meu pinhal e lia agora o meu coração?
Na noite do terceiro dia, acabaste de ler e finalmente pude ouvir o que tinhas para dizer. "Tinha razão, é um bom livro, mas, como não pode deixar de ser, depois de alguém fazer o bem como tu fizeste, é preciso retribuir. Queres ler o meu coração?"
Sorri, acreditas? Sorri e voltei a sorrir e tu sorriste também e encostaste a minha cabeça ao teu peito.
Foram breves os momentos que se passaram antes das lágrimas me correrem pelo rosto. Não ouvi um bater ritmado, violinos ou poesia.
No teu peito havia ar zangado, vento raivoso que batia pelas paredes do teu corpo qual furacão ensandecido. Mais bela música não podia haver. "Este é o meu sossegado coração" ,explicaste-me tu depois de uma semana encostado ao teu peito.
Recostei-me na árvore outra vez e ali fiquei a olhar para o verde infinito do pinhal onde tantas coisas se escondiam e só tu, bem à vista, me interessavas.
Um mês se passou até que como quem não quer a coisa agarraste a minha mão e te encostaste ao meu ombro. O teu cheiro tornou-se ainda mais forte e, redobradamente inebriado, senti parte do teu vendaval passar para dentro do meu sossego. No pinhal já abanavam as folhas e borboletas voavam.
Algo me envolveu a alma e sem saber de onde tamanha coragem tinha surgido, apertei ainda mais a tua mão, para nunca mais a largar, e olhei-te bem no fundo dos dois universos que te embelezavam a face.
Tocaram-se lábios e ventos infinitos começaram a fazer parte de mim acalmando-se o teu peito e ficando ele com um pouco do meu sossego.
Olhaste tu para mim e o teu vendaval nunca mais dali saiu.

Digo-te, meu amor, porque o sei...Amo-te.

Do teu,
André.

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