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quarta-feira, 9 de julho de 2014

Quarta

Minha querida,

Tudo aquilo que eu achava da guerra foi totalmente alterado.
Partilhava da opinião de todos os outros soldados que comigo marcham e marcharam. Pensava eu que a guerra devia ser lutada sempre com o maior cavalheirismo possivel, sem que se fizessem emboscadas ou que se matassem primeiro os oficias, mas apercebi-me que não há lugar para o cavalheirismo quando é o desespero que nos preenche o coração.
Cinquenta. Estamos reduzidos a cinquenta maltrapilhos e desses, poucos são os que estão melhor que eu. Uns têm ligaduras por todo o corpo, outros perderam dedos, outros têm cortes tão profundos no seu corpo que são impossiveis de sarar e que constituem um banquete para os poucos vermes que sobrevivem na neve.
Se antes disparava em direcção ao inimigo e não via as caras dos homens que matava, agora atiro-me das árvores para cima deles, golpeando-os com o meu machado com toda a força que possuo. Vejo os seus bigodes, as imperfeições da sua pele, os seus olhos temerosos. Vejo tudo isso e, por momentos, penso na familia que também os espera, nos filhos que terão, nos sonhos que querem concretizar, mas o meu braço não se cansa. Golpeio-os com rapidez e o sangue espirra na minha cara.
Já não sei quem sou, meu amor. Toda a esperança já se esvaiu do meu corpo e agora já nem ordens tenho que me deêm um objectivo.
Mato por instinto, porque apesar de todo o desespero que sinto o meu corpo teima em continuar a viver. Mato porque eles tentam matar-me a mim, porque estou sozinho no meio desta neve toda, ao frio, sem comida, sem munições e eles continuam a perseguir-me, moribundo que estou, continuam a perseguir-me.
Mato apenas por matar, mas prefiro acreditar que mato para voltar a estar contigo um dia, ver o pôr do sol e esquecer o rosto dos homens que fiz partirem para o outro mundo.

Espero que o teu sorriso nunca te tenho deixado e que continues de boa saúde.
Perdoa-me as palavras sinistras, se te entristeço, perdoa-me, perdoa-me por tudo, por existir e ser quem sou, por viver e por morrer, por te amar e não te poder ter, perdoa-me, perdoa-me.
Sê feliz por mim, por favor.

Teu até ao fim,
André.

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