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quarta-feira, 11 de junho de 2014

Segunda

Minha querida,

Se havia algo de errado com a chuva, agora já não o sei dizer. Começou a nevar e se antes tinha um pouco de calor, agora nem à noite, enrolado nos meus cobertores, consigo fugir ao frio. 
Apenas a tua resposta me aqueceu e me deu forças para pegar no papel e no lápis e tentar escrever algo que a minha mão a tremer não torne em rabiscos.
É um alivio que tenhas ficado feliz com a minha carta, que tenhas gostado desse gesto e que não me consideres alguém sem classe. Gostei também de saber que a tua familia se encontra bem e agradeço imenso que tenhas tirado algum tempo da tua vida para ver como está a minha. Escrevo-lhes todas as semanas, mas tenho medo que para me pouparem tentem esconder os seus problemas e nem sabes como fiquei descansado com as tuas palavras.
Perguntas-me se no meio de toda a agitação, dos tiros e balas de canhão, gritos e sangue que mancha a terra, realmente sinto saudades tuas. Pois deixa-me dizer-te que apesar de tudo o que se passa em meu redor, das ordens dos meus superiores, dos meus camaradas que, como tordos, caem à medida que as balas cruzam o ar que respiro, dos enormes estrondos que quase me deixam surdo, dos homens que feridos imploram pelas suas mães, do rufo dos tambores que me obriga a avançar quando apenas eu e um punhado de homens restamos na linha da frente, apesar de tudo isso, nada vejo, nada me afecta, nada sou senão teu. 
É para mim um mistério a razão pela qual continuo a sobreviver. Já há quatro meses que cheguei à frente de batalha e os alemães parecem impossiveis de derrotar, já mal conheço os homens que me acompanham e se, no inicio, chorava pela morte dos camaradas que tinham marchado comigo, agora nada mais consigo fazer do que um esgar de pena.
Diz-me tu...és tu que páras as balas que voam na minha direcção? És tu que impedes o inimigo de apontar os seus tiros ao meu peito? És tu que fazes com as balas de canhão me passem ao lado deixando-me vivo e matando dezenas de outros homens? É tua a mão que, em plena batalha, agarra a minha e me faz sentir invencivel?
Não sei que mais faça...Não sei se hei-de fugir e ser caçado ou permanecer e ser chacinado, não sei se me torne uma máquina e mate todos os que se metam entre mim e o regresso a casa. Sei sim que no meio do horror não há deus ou homem que me sossegue, apenas a memória dos teus traços e da tua voz me dá força para adormecer e rever as caras de todos aqueles que matei.
Por favor, não duvides da falta que me fazes.
Amanhã vou marchar novamente. Restamos três mil e há um exército de oito mil alemães que marcham incessantemente contra nós, a minha missão é deter o seu avanço e ver se não morro, para no dia seguinte fazer o mesmo. Tão perto estão que vejo a luz das suas fogueiras. Sortudo do mensageiro que te levar esta carta e espero bem que quando voltar já pouco de nós reste, para que ele possa regressar à sua mãe.

Se mais nada houver para fazer, reza por mim.

Sempre teu,
André.

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