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terça-feira, 18 de junho de 2013

Consomem-me as memórias do que já fui

25 de Dezembro de 2051, Porto

Querida perfeição de outrora,

há muito que já não vinha ao nosso Portugal, talvez porque as memórias são demasiado avassaladoras para que consiga andar sem me curvar de dor.
Está tudo alterado, tudo evoluído de uma forma que nunca pensei ver durante os imensos anos que aqui passei, tudo excepto o ar. O ar continua igual, com aquele cheiro a casa característico e que não está presente em mais nenhum lugar, com o perfume a saudade que sempre encheu o nosso norte. Confesso que não foi apenas uma lágrima a descer o meu rosto enrugado e não sabes a falta que me faz a tua mão para as limpar, para me confortar, para me libertar deste mundo horrível em que estou preso e tu estás aí, algures e mesmo assim não sei onde te procurar. Tudo me lembra de anos felizes, em que conseguia passar uma noite sem chorar e tudo era belo. Desde aquele cantinho onde nos beijámos antes de apanharmos o avião para Itália, ao pequeno labirinto de ruas em que andamos perdidos durante horas até finalmente encontrarmos o anel que tinhas deixado cair, que me tinha custado os olhos da cara. Que surpreendido fiquei naquele dia, o mundo parecia bom, ninguém tinha pegado nele e pudeste tê-lo de volta e, muito sinceramente, espero que ainda esteja no teu dedo, estará onde?
Felizmente viajo acompanhado, apenas ele me deu forças suficientes para vir e apenas posso ficar contente por saber que tenho um amigo assim. É alto e magro, muito magro, tem cabelo preto oleoso, olhos duros, uma barba que poderia pertencer a um czar. O seu nome é Gustav Yudin, lembras-te dele? Esteve presente durante tão pouco tempo na nossa vida e agora está sempre aqui, surgiu assim de repente, bateu-me à porta e nem a abri, apenas entrou, nunca mais foi embora, não de vez, se bem que de vez em quando desaparece durante meses. Tem qualidades estranhas ele, especialmente aquela de ser aparentemente invisível às outras pessoas, quantas não são as vezes em que vai contra elas e nem reparam, continuam a andar, como se o Yudin não existisse.Apoia-me sempre, não fala, nem sequer abre a boca ou talvez seja eu que não o consigo ouvir, mas a sua mão está sempre presente no meu ombro, muito levemente, muito cuidadosamente, esteja eu contorcido de dor, esteja eu direito, esteja o peso do mundo a esmagar-me. Felizmente veio comigo.
Hoje vou visitar a campa da minha mãe, ver as flores que o meu irmão lá deixou e perguntar-me se ele está bem da vida. Talvez vá visitar a campa da tua mãe também, tão boa que foi para mim, merece a minha visita, vou encontrar lá flores tuas?

Espero que as minhas lágrimas não tenham sujado demais o papel, são lágrimas belas, lágrimas de tristeza, lágrimas de amor, lágrimas de recordação, mas quero que tudo fique belo.
Porque será que te perdi?

Do teu,
André.

Vive la Resistance!

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